Das notas de rodapé

As de Clarice, as minhas e as nossas

Carla Leonardi
rascunhando

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Tem uma crônica da Clarice Lispector que, vira e mexe, aparece nos meus trabalhos. Eis que andei relendo (pela 635925ª vez) minha dissertação de Mestrado e vi uma nota de rodapé que coloquei sobre ela. Engraçado, eu não gosto de nota de rodapé, tanto que não leio direito nem as minhas. Mas coloco, vai entender. Bom, não é difícil entender, na verdade. Coloco porque é preciso — é para onde vão as informações secundárias e complementares ao texto. Só que às vezes eu roubo: deixo ali algo de especial.

Como o título sugere, a crônica “Pertencer” é sobre a busca por pertencimento, tema recorrente na obra (porque na vida) da autora.

Aqui, um trecho dela.

“(…)

Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso. Quem sabe se comecei a escrever tão cedo na vida porque, escrevendo, pelo menos eu pertencia um pouco a mim mesma. O que é um fac-símile triste.

Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova de “solidão de não pertencer” começou a me invadir como heras num muro.

Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações? Porque não é isso o que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertencesse. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos — e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.

(…)

A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho.”

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Para quem quiser ler inteira, é só dar um Google em “Pertencer, de Clarice Lispector”. No livro Todas as crônicas, da Editora Rocco, está na página 115.

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Carla Leonardi
rascunhando

Jornalista e leitora inveterada. Conversando sobre livros no Instagram @ca.leonardi